Ana Gomes defende que, no caso de a crise se agravar, o governo deve procurar uma solução mais abrangente com outros partidos para garantir a estabilidade e admite que em caso de eleições antecipadas há boas alternativas no PS a José Sócrates. A menos de dois meses do congresso, a dirigente socialista pede mais debate no partido e diz que há ministros que já não deviam estar no governo, como é o caso de Luís Amado.
Sabe que há pessoas no PS que não gostam de si?
Se calhar eu também não gosto delas...
Um telegrama do embaixador dos Estados Unidos, revelado na imprensa, dizia que José Lello, numa reunião na embaixada, expressou "uma clara aversão a Ana Gomes". Quer comentar?
Ele lá sabe. Não faço nenhum comentário. Só lhe posso dizer que isso me faz rir muito e que não me trouxe qualquer novidade.
Nas últimas semanas alguns militantes acusaram a actual direcção de condicionar o debate no PS. É um dos problemas do partido?
Eu revejo-me nas críticas, mas não sei se é a direcção que condiciona o debate ou se são os militantes que de certa maneira se condicionam a si próprios com a ideia de que fazer críticas seria demolidor para a direcção. Eu penso que é ao contrário. A história do PS é justamente que da crítica construtiva é que nascem as boas soluções.
Mas esse debate existe?
Não. Tem havido falta de debate, falta de pluralidade crítica e falta de ouvir quem critica. Eu penso que isso acontece devido ao aparelhismo que se instalou no PS.
Desde que José Sócrates chegou?
Suponho que já vinha de trás, mas agravou-se nos últimos anos de poder, e de poder em maioria. E também tem a ver com algumas das pessoas que estão na direcção do partido, e não tanto com José Sócrates. Ele desafiou, na última reunião, os militantes para um debate de ideias, mas depois há muita gente à volta dele que não quer debate nenhum e que tenta dissuadir aqueles que querem fazer essa discussão.
José Sócrates está mal rodeado?
Há certas pessoas de que nem vale a pena falar. Cada qual sabe de quem se rodeia.
As eleições directas não vieram motivar a organização desse debate?
Não, o que estamos a ver é como está a ser perversa a ideia de fazer eleições directas, que acabam por ser uma coroação.
Deviam acabar?
Penso que sim. A razão que levou a esse mecanismo foi positiva, mas a prática mostra que acaba por não haver debate, nem antes do congresso nem durante o congresso, porque as questões estão arrumadas.
Nunca sofreu nenhuma pressão para suavizar as críticas?
Não, mas fui advertida várias vezes. Não por ninguém da direcção, mas por outras pessoas. Quando eu estava a fazer a chamada investigação da CIA recebi esse tipo de advertências - advertências amigas até -, mas depois não aconteceu nada.
O que lhe diziam era que podia perder o lugar?
Sim, o que me diziam era: não queres ser deputada outra vez? E eu dizia: se não for, paciência. Não ando na política à procura de uma carreira. Eu também gostava que houvesse um sistema eleitoral que tornasse mais clara a vinculação dos eleitos aos eleitores.
Os círculos uninominais.
Exacto. Seria extremamente útil. Um sistema combinado com um círculo nacional. Seria importante para responsabilizar os eleitos.
Foi o que defendeu recentemente Jorge Lacão, e o partido não gostou.
A redução dos deputados só por si não resolve nenhum problema, mas no quadro de uma reforma para aproximar os cidadãos da política faz todo o sentido.
Mário Soares diz que é necessário mais debate, menos marketing e menos boys. É um bom retrato do PS?
Concordo a 200%. Há vários vícios que se instalaram e que de facto prejudicaram a governação e a percepção da opinião pública em relação ao PS. Isso ainda faz mais sentido nesta conjuntura, em que o país está numa situação muito difícil e é preciso corrigir vários erros para poder governar. Do meu ponto de vista é mais importante do que nunca, quando se pedem pesados sacrifícios aos portugueses, dizer-lhes a verdade, o que implica menos recursos aos truques do marketing.
O PS recorre excessivamente ao marketing?
Não quer dizer que não seja um processo positivo de comunicação, mas quando se trata de utilizar o marketing para dar uma realidade que não tem ligação com o dia-a-dia das pessoas e com os sacrifícios que são pedidos é evidente que isso acaba por descredibilizar a mensagem do PS, numa altura em que a autenticidade é o mais importante e não podemos não dizer a verdade aos portugueses.
A mensagem do primeiro-ministro está descredibilizada?
A realidade não são só coisas positivas. Não são só as exportações a crescer. São também outros dados importantes, que estão na origem dos tremendos sacrifícios que estão a ser pedidos aos portugueses. É preciso explicar aos portugueses que os sacrifícios valem a pena. O mais difícil é os portugueses entenderem os sacrifícios que lhes estão a ser pedidos.
Acha que não entendem?
O que é mais complicado, e pode ser fonte de grande descontentamento, é a percepção de que não há justiça nos sacrifícios que estão a ser pedidos. Eu não percebo a razão de os funcionários públicos terem sido sobrecarregados e outros sectores da vida económica não, nem a razão de os desempregados terem sido particularmente afectados enquanto os bancos continuam a ter lucros e arranjaram meios legais de pagar quase só metade dos impostos. Isto para mim é grave e revolta os cidadãos e as bases do PS.
E não é preciso cortar nas despesas do Estado?
É importante fazer um trabalho para identificar onde há desperdício. Todas essas fundações...
Existe no PS alguma resistência?
Claro que há, porque sabemos bem que os boys resistem a quem lhes quer tocar.
Portugal deve recorrer ao FMI ou resistir?
Acho que deve resistir. José Sócrates tem tido a capacidade de não ceder e de fazer tudo para que se encontre uma solução europeia, que passa pela flexibilização do fundo.
Tem esperança numa solução?
Sim. Temos tido encontros diversos e é claro que tudo está ligado à evolução interna da Alemanha, e acho que temos de resistir e mostrar que fizemos as reformas.
Vai apoiar algum candidato nas eleições directas?
Quero ver a moção de José Sócrates, mas acho que vai ser reeleito e eu votarei nele porque o PS está à frente de um governo minoritário numa conjuntura dramática e José Sócrates tem as qualidades necessárias para levar o país a sair desta crise. Não me passa pela cabeça que o PS mude de liderança nesta conjuntura. Não quer dizer que passada esta fase não mudem as circunstâncias.
O BE apresentou uma moção de censura e existe uma permanente instabilidade política. Há alguma solução para uma governação mais sólida e mais estável?
Acho que numa conjuntura de crise é sempre preferível uma situação maioritária. Ela não foi possível e não digo que o PS esteja isento de responsabilidades.
Defendeu uma aliança com o BE nas últimas eleições legislativas.
Exactamente, e só tenho a lamentar que o BE inviabilize uma aliança com o PS. A única explicação é que o Bloco é avesso a assumir responsabilidades governativas. O Bloco inviabiliza uma coligação à esquerda e tem responsabilidade por haver uma maioria no PS que tenta encostar o partido à direita.
Quais são as soluções para o PS continuar a governar?
Vai depender da capacidade da Europa de dar, em breve, uma resposta à especulação que está na origem desta escalada dos juros e de nos ajudar a sair da crise.
O PS não devia apresentar uma moção de confiança, perante a ameaça constante de eleições da parte da oposição?
Não me admirava que, depois do congresso, essa possa ser a saída. Admito e compreendo aqueles que se inclinam para uma solução de governo maioritário. Eu à partida tenho medo do centrão, mas numa conjuntura tão complicada como esta, se não houver rapidamente medidas a nível europeu que permitam descer os juros da dívida e começar a crescer, temo que haja um potencial explosivo ao nível social e que isso venha a implicar uma solução de governação de abrangência que ajude a tomar as medidas necessárias e a acalmar a situação. Como isso se vai fazer não sei.
Se a Europa não avançar com soluções concretas, pode ser preciso um governo de coligação?
Se não avançar, é uma situação incomportável a prazo, e aí temos de tomar decisões e, do meu ponto de vista, elas poderão passar por uma moção de confiança do PS e pela procura de uma solução de governação que seja o mais abrangente possível.
Se for preciso FMI, o PS deve apresentar de imediato uma moção de confiança?
Absolutamente, do meu ponto de vista. Não haveria condições. Mas o FMI não dá a solução. Será diferente se a Europa adoptar medidas para a flexibilização do fundo, para poder intervir nos mercados secundário e primário, que é o mais urgente.
E nós podemos esperar?
Se não aguentarmos, temos de arranjar uma solução de governo abrangente, que co-responsabilize as forças políticas que representam os portugueses.
Se houver uma crise política e eleições, José Sócrates deve recandidatar-se?
É uma decisão que ele terá de tomar. O PS tem muitas alternativas. Será o próprio José Sócrates que terá de decidir se tem condições ou não, mas ninguém é insubstituível e nessa conjuntura o PS terá soluções alternativas.
Deve haver uma reflexão no PS?
Nessa altura veremos, mas sem dúvida que o próprio PS tem de decidir quem tem mais condições se tivermos de travar eleições nessa conjuntura. E o PS terá de fazer um julgamento.
Defendeu uma remodelação. Continua a pensar que deviam ter sido substituídos alguns ministros?
Sim. Defendi que a seguir à aprovação do Orçamento devia haver uma remodelação, e acho que nessa altura devia ter sido feita.
Há ministros desgastados?
Com certeza que há. Há ministros que já se declararam desgastados e quase se candidataram a ser remodelados. Estou a referir-me, obviamente, ao ministro Luís Amado.
Compreende a manutenção do ministro dos Negócios Estrangeiros no governo, apesar das divergências claras com o primeiro-ministro?
Compreendo, mas não quer dizer que apoie e aceite as razões.
Está fragilizado?
Nós precisávamos de ter uma diplomacia mais actuante do que nunca, e não uma diplomacia técnica. Uma diplomacia com "D" grande e com um discurso claro de soluções para a crise. E ter o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) nas mãos de alguém que não se sente motivado é uma fragilidade.
Qual a sua interpretação de magistratura activa de Cavaco Silva depois dos conflitos com o PS durante a campanha eleitoral?
A campanha eleitoral agravou as relações com o PS, sem dúvida. Vamos ver qual é o significado da magistratura activa.
Um dos sinais é que está a tornar públicas audiências que no passado eram mais discretas.
Acho bem que o faça. Uma das coisas que critiquei foi ter tido um papel inexistente numa solução para a crise. Acho que é desejável que seja mais activo, e até pode ser útil para o discurso realista que o governo tem de fazer.
Já percebeu melhor o que aconteceu na altura em que a direcção de Ferro Rodrigues, a que pertencia, se viu envolvida no processo Casa Pia?
Não percebi, em detalhe, muito melhor. A história está por contar e por investigar. Acho que tive bem a percepção do que se passava, que era uma miserável intriga para derrubar aquela direcção, que era uma direcção de gente séria, que estava a procurar sanear as contas do partido. Por exemplo, a Lei do Financiamento dos Partidos Políticos, que entrou em vigor em 2005, foi por determinação de Ferro Rodrigues. Era uma lei moralizadora. A que existe hoje é muito pior.
A resistência a essa direcção também veio de dentro do PS?
Eu disse-o na altura e não excluo que possa ter havido alguém dentro do PS que tivesse interesse em derrubar Ferro Rodrigues. Não foi por acaso que foi Paulo Pedroso a ser envolvido nesse caso. Era a pessoa que estava a tomar medidas de saneamento. Inclusivamente de funcionários do partido que não existiam e recebiam dinheiro.
Eram pagos pelo partido sem trabalhar?
Exactamente. Pergunte-lhe, mas o que aconteceu foi que houve o escândalo Casa Pia com a necessidade de encontrar bodes expiatórios ou culpados e figuras públicas e mediáticas que fossem responsabilizadas. Eu não percebo como foi possível condenar o Carlos Cruz com base naqueles elementos. Eu li o processo. E havia outras coisas...
Outras coisas?
Havia o processo do parque de que ninguém fala, mas que o SIS sabe. O dr. Rui Pereira, que era o director do SIS nessa altura, sabe. O processo do parque onde algumas pessoas tinham sido apanhadas, algumas figuras políticas inclusivamente. E portanto havia que montar uma encenação que concentrasse os holofotes em determinadas pessoas e desviasse as atenções de outras. E foi isso que aconteceu. Eu fui àquela célebre manifestação que houve, logo a seguir ao rebentamento do caso, na qual estava a Catalina Pestana. Eu fui lá e fui dizer que o processo estava a ser orientado para desacreditar a justiça.
Catalina Pestana disse que não acreditava na inocência de Paulo Pedroso.
Essa mulher, para mim, não tem qualquer credibilidade. Foi directora de um colégio da Casa Pia e nunca viu nada e de repente viu tudo. Como é? Essa senhora para mim não tem qualquer ponta de credibilidade. O que eu lhe digo é que era preciso que se investigasse e se percebesse o que aconteceu. Sem dúvida que os holofotes foram desviados para Ferro Rodrigues e Paulo Pedroso com base em testemunhos que não tinham credibilidade. Não estou a dizer que os miúdos da Casa Pia não sofreram horrores, mas eles são facilmente instrumentalizáveis a partir da hora em que entraram na delinquência. E seriam facilmente manipuláveis.
E foram manipulados por quem?
Se calhar havia muita gente com diversos interesses. Uns tinham de prestar contas a nível da investigação, outros queriam desviar os holofotes de pessoas que podiam ser apanhadas e outros ainda queriam ver-se livres de pessoas que estavam a ser particularmente incómodas no PS. A investigação está por fazer.
Acha que o processo Casa Pia influenciou a decisão de Jorge Sampaio de não convocar eleições, que levou à demissão de Ferro Rodrigues?
(Silêncio) É possível que sim, talvez inconscientemente também. Houve certamente pessoas que o Presidente Jorge Sampaio ouviu para quem isso era determinante. Sei que uma dessas pessoas foi, por exemplo, Jorge Coelho.
Não esperava a decisão de Jorge Sampaio?
Esperava que ele tomasse outra opção. Já conversei com ele e já lhe pedi desculpa pelo meu excesso de emotividade. Depois foi forçado a ir para eleições, o que não me admirou nada.
O procurador-geral da República disse que os partidos tentam resolver questões políticas através de processos judiciais.
Não me parece que tenha fundamento. Como alguém dizia, deixem o procurador acabar o seu mandato com dignidade.
O governo falhou no sector da justiça?
Este e os outros todos, mas este também falhou. Não há dúvida. Até pela nomeação do procurador-geral da República, que não tem o perfil para o lugar.